2045...
- Meus óculos?
O garoto observa a bisavó que insiste em usar óculos, dizendo que sem eles perde sua identidade. E em se tratando de identidade, ela é categórica:
- Não quero esquecer quem sou.
Ela não abre mão de sua rotina diária: ler o jornal impresso, que é mantido apenas nas pequenas cidades, pois com um comando no telefone celular é possível projetar páginas de vários jornais em qualquer superfície.
Inicia a leitura fazendo comparações com ironia, o que não perdeu mesmo na velhice, condição que segundo dizem faz com que as pessoas voltem a ter um comportamento infantil, quando a capacidade de compreendê-las se esvai deixando os jovens num dilema: ou continuam dando risadas da expressão boba dos velhos, ou param de falar com eles para evitar perguntas. Ela diz preferir a primeira opção e sintetiza:
- A arte de viver bem é fazer graça da própria desgraça.
O menino deixa sua parafernalha tecnológica de lado e fica ouvindo seus comentários, fazendo perguntas, mesmo que as respostas sejam algumas histórias já repetidas. E sem saber bem por que sente que isso lhe faz bem. Talvez seja a tal da identidade que ela tanto faz questão de manter.
Um resmungo... Deve ser violência.
Um palavrão... Drogas.
Uma risadinha debochada... Certamente é política.
Um chimarrão... Nunca o deixará.
Um olhar perdido através da janela por onde entra o sol... Ah! Ela adora o sol. Diz que ele faz com que se sinta com 19 anos, mesmo aos 90.
De volta ao jornal é o momento do silêncio. Palavras cruzadas. Ela não quer ajuda. Ninguém se atreve a perturbar seu exercício de sanidade.
De repente, ela volta ao convívio reclamando que os guris não aparecem.
Parece possuir poderes sobrenaturais, pois passados alguns minutos eles chegam. O tio-avô do jovem ouvinte, barulhento como sempre, fazendo com que ela dê boas risadas e em seguida o avô, imitando algum conhecido mútuo, o que a deixa em estado de graça.
- Meu pai já dizia que eu sou muito boba, tudo que os guris falam eu acho graça.
O bate-boca vai começar. Eles sabem o que dizer para que ela solte o verbo. E 2046 será ano de eleições presidenciais. Ela começa um relato do que aconteceu em 2010, quando o Brasil teve três presidentes.
- Quem obteve a grande maioria de votos foi o “Brancos e Nulos” e os três candidatos mais conhecidos das crianças empataram, e não foi empate técnico, foi empate na batata.
Quando os risos amenizam, ela continua:
- O Senado fechou em assembléia secreta do tipo das que elege Papas durante sessenta dias e sessenta noites, até que sem fumaça, mas com muito barulho, foi anunciado que o trio governaria, com a justificativa de que se as duplas da música sertaneja universitária eram sucesso, três propostas em sintonia seria o máximo. Foi uma época importante para o nosso país, pois tivemos uma economia sustentável com um crescimento político-ecológico-saudável-social correto.
Olha para o bisneto atento e explica:
-O financiamento da casa própria só se fosse construída com garrafas pet. Projetos como o Bolsa Família continuaram, eram sacolas feitas de material reciclado contendo algumas mudas para horta doméstica e livros... não para comer, para ler. E o Bolsa Escola teve algumas modificações, era alunos em horário integral na escola desde o momento em que estourasse a bolsa... não de valores, do líquido amniótico. Com as primeiras contrações a mãe ia para a escola e ficava lá com filho até que estivesse alfabetizado. Há quem diga que foi uma forma dissimulada de fazer um controle da natalidade que não deu certo, pois os papais tinham que trabalhar para manter a produção. E o pior de tudo foi que os professores não podiam mais dizer que educação se traz de casa.
Mais risos.
Talvez a velha senhora tenha razão quando afirma para o bisneto incrédulo que só o avanço da medicina foi importante, pois fez com que ela viva com as mesmas dores que tinha aos 55.
- Mesa! – é o anúncio de que o almoço está servido.
Vera Lucia Mosmann - Parobé, agosto de 2010.